sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O homem que ficou com o casaco

Ela tinha a companhia dele nas noites turvas. Costumavam conversar enquanto a poeirinha de frio subia pelas pernas no ritmo de cada passo dado. Subentendido nas palavras, estava, para assim dizer, o esquecimento dele: ele tinha o casaco, ela não. Um esquecimento digno de um homem frio. O balanço do queixo e o arrepio na nuca de quem revelava a precisão de, mesmo estando ali, ir embora e, ainda assim, insistir em cada palavra ouvida. Ele não podia negar que mais frio ainda estava o frio na barriga. O frio de quem ama e não viola-se. Trema, homem, mas não tema! O amor é cálido de mais para se abafar num tecido de lã. (...)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Álibi

Surjo dos emaranhados onde as corujas se enfileiram uma-a-uma na dança de contorcer as cabeças. Não é um lugar estranho: negrume, somente. Pior és tu que surges de lugares banais e coloridos de sonhos meus, aliciando meus desejos para o teu vigor. Ordinária esquisitice de cair nas tuas ratoeiras e me danar sob o teu faro, foi onde errei e não erro mais. Não sou réu confesso, mas projeto maltrapilhamente nunca mais sofrer.

domingo, 7 de novembro de 2010

Welcome to my bath

A água gelada escorre. A cabeça quente, também. Ouço, bem ao fundo, a voz sofrida de Damião Arroz seguida da Lisa:
- Nothing unusual, nothing's changed: just a little older, that's all.
Será? Nesse mundo de manada, quem decide viver só é velho.

Narciso



Não havia sinal de fogo e, mesmo assim, me pus em posição de esgrima. O inimigo acobertado de armadura estava preso aos portões em alto ego: peito aberto e gritos ensurdecedores. As correntes me prendem bem ao meio da arena e, entre esmurro e ao meio da zoada, me ponho na candura de estar no lugar dele. Ele era eu. É como se, por instantes, o seu próprio ego desejasse profundamente te matar. As correntes somem, meus olhos cerram e ouço as ordens de Átropos:

- Cortem-lhe a linha!

Desconstruindo Julieta

A contagem dos ladrilhos se misturava à reza e aos pedidos de bons caminhos. Julieta, que procurava um bom futuro nos rastros das borboletas, tinha a liberdade sob os seus pés. Quanta pretensão - eu, Romeu – admirar tanta leveza num ar devasso: as borboletas se entrelaçavam às tatuagens que, por seus milhares de vezes, embaralhavam-se com as palavras de bom futuro. O fato é que, num dia normal de uma blusa florida, ela esperou a borboleta. E esperou. E esperança! A borboleta, sem anúncio, pousara na caçadora. Julieta-borboleta, de tanto elencar bons acontecimentos orientados por elas, estava, por inteira, no caminho certo. Ela era a certeza, ela era o bem.