terça-feira, 9 de agosto de 2011

A filha do vendedor de fitas

Os ventos do oeste a presenteava uma vez por ano: era um amor a cada janeiro. Não era safra, era que ela preferia os recifenses. Daí, em todos os verões, ela se apaixonava. Era faceira, tinha a pele escura, testa grande e olhos expressivos e mantinha a sobrancelha grande pra azular seu olhar já obscuro. Uma menina que fazia suspirar os incansáveis nativos que tanto apostavam, quanto os que nem careciam ir atrás. Nada mais ordinário. Uma vez por ano ela costumava ir à estação de trem também. Ia pra dessonhar. Enquanto todas as meninas iam com seus lencinhos, ela ia com um punhado de fitas, as içavam e dizia adeus enquanto acenava e ouvia os jovens proferirem todo seu amor. Junto ao adeus, ela recolhia um punhado de beijos enfitados e os mandava pelo vento num nó bem bonito, já o vento retribuía trazendo-lhe a brisa que faz arder os olhos molhados e a deixava terna e jovial e invasiva e lacrimosa e vulnerável e triste, triste, triste. Todo esse causo durava três ou quatro meses até ela se recompor e sonhar novamente aos borbotões nas brisas de inverno.

Café-com-leite

O decesso não era uma opção. Pelo menos não efetivamente, mas só quando a vontade circulava nessas brandas iras. Talvez justificasse o medo de ser levada na hora de dormir: só pegava no sono com o papo pra cima, em supino, e com os dedos entrelaçados sobre o peito. Pra enganar a Morte, cruzava as pernas e disfarçava a posição de defunto. Por vezes, arriscava ser mais esperta e posicionava paralelamente os joelhos, mas tratava de manter os olhos fechados profundamente atentos a qualquer mudança de luz. Ao lembrar-se da sua desvantagem, se perdia dessa disputa com um homem que lhe fazia manter os olhos grelados, que lhe martelava as lembranças e a fazia fantasiar os devires bem na hora de sossegar. Ele, coitado, nem sabia que era posto nessa rixa, era um café-com-leite. Ora pensava Nela, ora pensava nele, mas não agia. Em retrocesso, não pôs mais nenhuma vontade viril afim de fazê-la sentir-se viva. Quando, enfim, achou... já tinha perdido a jogatina. Era um a zero pra Ela: com direito a travesseiro salpicado e uma faca engatada à fúrcula.


sexta-feira, 13 de maio de 2011

Blecaute

Já alvorecia quando ele começou a sentir contra o peito as ondas do uísque barato que estava abrigado sob paletó que se debatiam nos ritmos de cada passo. Já não lembrava em qual taberna tinha entrado e sorvido meia garrafa de dó, mas lembrava que foi nela que, na porta de entrada, cruzara com uma moça de sorriso mudo.



- São três da manhã, os sorrisos já não são mais permitidos. Pensava, quando não se podia fazer mais nada.



Tracejava em mente as maçãs do rosto dela, o olho apertado, as alças caídas e misturadas ao cabelo desmantelado. Já não era sem tempo de pôr alguém na vontade, mas ele achava que voltar era desesperadamente infrutuoso.



- Ela devia saber que, às três da manhã, para vulnerar alguém, basta-lhe sorrir. A madrugada é para o dissabor: já não há tempo para as angústias na correria matinal.



O sentimento de ser tapeado perdurou até as luzes da cidade se apagar. Um escuro ministrado somente pela luz refletida nas nuvens que anunciavam o devir do sol. As pessoas não passavam de sombras sem rostos e os movimentos eram denunciados pelos sons dos encalços. Ele acompanhou um poste e, disfarçadamente, deu meia volta enquanto tateava-o na sua circunferência. Voltou três quadras em passos de gatuno cambaleante e começou a se enfiar em todas as tabernas suspeitas. Voltou mais algumas quadras e, repentinamente, surgiram sorridentes numa manhã, começando, assim, a embaralhar tudo. Foi a um café, sorveu uma xícara com talos de canela e, ao sair, ironicamente, se cruzou com uma moça de choro libertino.

O larápio e a lata de chá

Quando era pouco mais novo, quando não passava dos dez, costumava recolher coisas de valores pessoais, não passava de um punhado de coisinhas velhas encontradas no decorrer de uma década útil. Recolhia-as e as guardeava dentro de uma lata de chá, já com a tinta descascada e digna de ser um soldado fatigado pela guerra, mas ainda resistente. Lembro-me dos cachos dos meus gatos, era um cacho para cada gato, até para aqueles já tinham se ido, tinha também uma carta em forma de desenhos de vizinhas que, quando saíamos de férias, elas, em desenhação, retratavam a dor de uma saudade. Guardava as lâmpadas queimadas de todos os Natais, meu futebol de botão, minhas trovas tortas, meus dissabores vis... o irônico é que me roubaram-na, não pela opulência dos artefatos, mas pela raridade da lata. O larápio não conhecia a destruição onírica que iria induzir ao garoto, o pôs em holocausto das próprias crenças e ainda aniquilou belas poesias devires: a jovem insegurança é tamanha que, até hoje, lhe faltam verbos para conectar as idéias dispersas no medo de tentar finalizar algo que, quando colecionava, ele tentou e foi abruptamente interrompido.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Pescaria

Enquanto fecho os olhos, vejo meus peixes tímidos nadando em lágrimas, escorrendo na face já disfarçada e, finalmente, se debatendo no solo à procura de suspiros que demandem vida. Aquelas costuras invisíveis a fio de náilon entre nós costumava nos trazer sardinhas: não eram salmões, mas eram diferentes das botas velhas de hoje... o fato é que a nossa tenda de peixes faliu, você não vendeu nada, apagou as luzes e foi embora só com o troco.

A gaita

Ali, bem ali, algo se desvencilhava dos ferros e se aturdia em poder de pássaro: voava sonoro que o céu mantinha inveja. Desse modo, então, o céu decidiu refleti-lo em nuvens, imitou, imitou... o vento soprou e fez barulho: desmoronou minha casa de taipa e encantou meus ouvidos. (...)



segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

[à] [uma] [flor]

Parei no tumulto enquanto estava em Las Vegas, decidi ir [à]quelas cabines vermelhas de telefone, o copo de uísque ainda sob a bancada junto a alguns dólares que restaram de uma noitada. Liguei pra agradecer. A garota pálida enfeitada com os cabelos negros dissera que se sentira na minha leitura. Entre centelhas, moças devassas e pernas de pau, ela se encontrou. Quanta honra! Minha poesia atravessou minha pele e se expôs ao nu. Ela, h[uma]na genuína, decifrou e entre lindas metáforas me descreveu. Num instante minha carne se dissipava num céu azulado oscilante de inquietude e calma. Ela me trans[flor]mou!

pontual Dani, depois de “Presente de Deus”)


segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Pão, circo e carnavais

Foi nessas pilantrices de carnaval que te bebi. O Galo da Madrugada, naquele dia, não foi capaz de me tirar de casa: o sofá frio era esquentado pelo meu corpo nu e dopado com alguns goles de algumas bebidas misturadas... teu gosto agora é ruim, mas, ainda assim, te bebi e não me embriaguei. Tu me propunhas pão e circo, mas o que me deixaste foi apenas a boca adormecida nas madrugadas de carnaval. O pior é saber que fui bebido primeiro e pocilga nenhuma te foi capaz de não desdenhar-me. E meu trunfo torto na manga é voltar às maracutaias embaladas ao frevo na próxima madrugada e, quem sabe, encarrilhar outras bebidas a outros amores.