terça-feira, 31 de agosto de 2010

Disfarce

Daria para ouvir os suspiros se não fosse o ranger da cadeira que ia e voltava com o empurrão das pernas sobre o móvel do centro. Se não fosse o clarão que viinha da janela, daria para ver os dois pares e mais um sapatos espalhados pela sala que esperavam pela dança, já a dança, pelo par. Mantinha sempre um sorriso. Sorriso feito vela branca – iluminado e sombrio – tudo assim, ao mesmo tempo. Daria, quem sabe, para ouvir seus velhos discos de blues, mas ela insistia em declamar e decorar seus argumentos de como sua vida era irrelevante ao uísque. A trivial Samanta, coitada, de tanto esperar se iludiu, beijou e se apaixonou pela monotonia. Alma gêmea.- Eu amo nós, escreveu.
Se não fosse o livro fechado, daria para ver a carta de suicídio, Samanta viva e os sonhos mortos...

domingo, 29 de agosto de 2010

A andorinha e o presidiário

O frio não intimida. Ele tira a camisa e ela, a sapatilha. Correm ávidos por um pouco de tempo a mais. São motoristas bêbados que se defrontam com o mar. São crianças endiabradas que pulam as ondas e tropeçam nas pernas. São festeiros que comemoram a liberdade dela. Futura liberdade. Há pouco menos de seis meses, ele a quer bem. Suga as forças vindas de sofrimentos passados e, enquanto tentam se aquecer, ele não faz nada. O presidiário sofre com as grades.
- Olhem o meu estado! Disse a andorinha de braços abertos enquanto umas gotas salgadas saiam das roupas e percorriam seu corpo até o calcanhar.
Ela está livre.
- Que não sejam devaneios de um preso alcoolizado, pensou ele.

Centelha Cecília


O que te separa da morte é um passo, Cecília. A cama já está ensopada e a garrafa de gasolina, seca. Os sonhos têm rastros de desculpas de si mesmos, são sonhos fúteis martirizados pela idéia de não serem apenas ilusões. Teu corpo intocado, branco e fresco de vinte-e-muitos-anos dava andamento ao próprio atormentar de cabeça que te corrói a alma e te faz lembrar a solidão. A tua cabeça inocente se corrompia com a idéia de fogaréu, mas se aliviava com o fato de libertar-se. O fósforo já está na tua mão e a centelha já foi disparada. É confuso, mas, de tanto ser guiada pelo brilho tu decidiste seguir a centelha. Cecília avançou.

Três buracos, dois botões e um bolso

Havia mais buracos que botões. Às 05:35 da manhã, solicitaria a Amparo para que trouxesse a camisa já remendada e de mangas curtas que lhe faltavam um ou dois botões. Engatou a correntina na barra da calça, esticou-a e colocou o relógio de bolso justamente no bolso, colocou uma caneta equilibrando-a sobre a orelha esquerda e duas folhas de papel junto à carteira, também. Lhe era de cor contar até três para subir escadas. Um, dois, três; subiu. No quarto da filha, com todas aquelas estrelas de plástico reluzindo e manifestando um ar cor de neon, ele deixou um pacote e três beijos. Um, dois, três; desceu. Para a mulher, os dois reais para comprar os pães e para Tom, o gato, um pires de leite, dessa vez bem caprichado. Algo estaria para acontecer. Mas, num dia comum, ele saiu dizendo que ia comprar cigarros. Nunca mais voltou.

Contradança

O sinal está aberto para que o semblante enfurecido do homem a encarasse e, com uma braveza estonteantemente devassa, ela afrontasse. Três passos sob as linhas brancas e um gesto de repulsa levantando o punho com as mãos abertas a vinte e cinco centímetros de vácuo entre eles foi impecavelmente combinados pelo destino. Ela: um passo para a direita, um passo para a esquerda; ele: um passo para a esquerda, um passo para a direita. Encontrar-se perde a graça. O toque no ombro e o solavanco para trilhar sozinho. O semáforo está aberto e a procura de um espaço para cruzar e ir-se embora.

Agreste

Vejo um controle remoto surrado, um celular barato e, sobre a cadeira, umas roupas amassadas que denunciam uma noitada passada. Meus olhos ávidos por uma, duas ou três poesias não captam nada. Estou seco.