sábado, 25 de setembro de 2010

Cinzas

Sonhei que era sonhador. Que não sentia dor.
Eu, poeta aniquilado, me permiti te amar por nove anos. Sonhei emaranhar-me em ti. Que estava errado, que certo, que coisa-e-tal. Queimei teu nome! Me basta reconhecer-te pelo cheiro, pela rebeldia, pelo cantar... sou homem condenado ao não amar. Sou poeta carecido de corpos, de inspiração. Sou devoto da permissão permitida por mim de livre ser.

domingo, 19 de setembro de 2010

A saboneteira vista de baixo

“Eu não vou mudar não, eu vou ficar são mesmo se for só. Não vou ceder! Deus vai dar aval, sim: o mal vai ter fim e no final, assim, calado, eu sei que vou ser coroado rei de mim.”

De onde vem a calma - Marcelo



A cabeça atinada me fez trancar a porta de trava quebrada do banheiro e me trancar lá dentro. Te desatina, cabeça, desatina-me! Me faz parar de tremer. Me deitei aos pés da pia e procurei companhia – mas, veja, não há aranhas – há, entretanto, uma saboneteira. Toda saboneteira vista de baixo é a ponta da tromba de um elefante. É como se estivesse num safári: numa areia movediça, as idéias que tanto se debateram, agora estão atoladas. Eu, que desrosqueei o alargador, tirei o escapulário, desprendi a pulseira e estava pronto a passar a noite ali, estou são. O único problema é que elefantes não conseguem me ajudar a pôr a pulseira de volta. (...)



quinta-feira, 16 de setembro de 2010

domingo, 12 de setembro de 2010

Poesia urbana

Andamos feito gatos em guetos. Somos astros de um show onde a lua nos é antensiosamente nossa. Desossamos a arte; devoramos o verso; desembolamos as vísceras da rima e as saboreamos com uma dose da tua voz introspectiva com artimanhas de uma felina. Viramos lata, cruzamos ruas e, por fim, nos entocamos numa rua sem saída. Findamos o espetáculo.

A morte de Jacinto


O soprar dos ventos nos traiu. O que o desatento causa? Oh, lírio, meu delírio. Se soubesse: o disco eu não jogaria! Morreste me admirando, mas, e eu? Sou a ordem ao rir da brisa ocidental. O vilão venceu, vida vil. Átropos há de dar aval, sim.

sábado, 11 de setembro de 2010

Nomeie um sonho aqui

A noite já foi mais amável. Os sonhos de envelhecer divido apenas entre meu consumido coração e o cérebro que me escapa vez em quando. Essa é uma conexão única em que o cérebro me ajuda - ela, que não se disvincula do âmago - e ele me faltando essa informação. Há tempos me esqueço sem esquecê-la. Nós fomos pegos num sonho desgastado onde o que era velho não éramos nós, era, apenas, um sonho velho de um único velho. (...)

Armas de fogo

Estamos em quatro. Pilhas de livros e montes de papeis em branco assistem ao digladio de quatro pessoas armadas com suas infames perguntas infantis. Entre a busca por um pouco mais de experiência a cada nova resposta há alguém desconfortável: um ser ainda novo, mas convicto da verdade de ser pleno com seu próprio ser. Ele usaria a arma mais graúda num combate, a pergunta já foi disparada à pólvora e lhe falta o escudo na ponta da língua. Touché! Retrocedeu.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A cigana e o florista

Me envolvi, me entregaram e me entreguei. Meus dias de florista acabaram. Acredite ou não, eu – que vendo amor e não posso amar – me apaixonei. Quem daria uma rosa ao vendedor de flores? Uma moça morena cheia de pingentes de ouro me deu. A batida da música dava ritmo ao meu esticar de braços, agarrei a rosa e nunca mais soltei. Mesmo sem dar um passo sequer, eu há muito tempo parti em busca de alguém. Engraçado, já ela tanto andou sem procurar e encontrou. Acho que foi minha insistência. Acontece que o cheiro dela entrou nas minhas entranhas, atravessou meus pulmões e se alojou entre eles. Estou ciente que meus dias de folga estão contados: se apaixonar por uma cigana é inconstante, a qualquer hora ela parte, meu coração se parte e a pior parte é saber é saber que vou continuar sendo a pedra do meu próprio caminho. Caminho que, com muita insistência, vou pedir para ela jogar migalhas de pão para marcar a volta. E quando avistar uma pedra – provavelmente quebrada – vá de encontro a ela. Quero todo o coração da cigana e a metade do meu de volta.

Únicas palavras

- Olhe, Sr. Desespero, não me leve a mal, mas com tudo o que aconteceu, o senhor não deveria se incomodar e nem, muito menos, bater na minha porta às duas da manhã...
- (...)
- Acontece que o senhor não pode se culpar pelo Sr. Amor, ele é quem me faz sofrer.
- (...)
- Dizem que a cura para a doença do sofrimento é uma reza forte feita pela Madame Liberdade, é verdade?
- (...)
- O teu silêncio me endoida – aliás, falando nisso – vou visitar a Dra. Loucura, ela costuma te atravessar as entranhas e te analisar a fundo. Ela é maluca que cuida dos maiores malucos. Não é maluco isso?
- (...)
- Boa tarde, Dra., dizem que a senhora é doida, mas não me importo... eu sofro da doença do sofrimento, tenho rachões no coração...
- (...)
- Sinto que as poucas melhoras de quando visitava o Sr. Amor acabou... agora sou nada novamente. E não sinto vontade de me levantar, sabe? Eu nunca fui bonito, mas lá – lá na casa do Sr. Amor, eu me sentia bem, pelo menos era disposto a me levantar noutro dia. Mas, e agora? O que tenho?
- Você tem medo dos castigos da Mãe Existência.

sábado, 4 de setembro de 2010

A borboleta púrpura e o indolente

O vento foi formidável para que a borboleta cor-de-rubi adentrasse entre o trigo e empoleirasse numa lâmpada cor-de-prata. A lâmpada, ou melhor, o gênio cor-de-céu, despertara. A sonolência dele se despedira após o singelo ato da pequena voadora... ela lhe trouxe luz! Trouxe também a esperança cor-de-folha para que seu pensamento se vinculasse à liberdade. Estamos livres! Numa aquarela, o roxo se misturou ao azul e o (meu) amor não era mais vermelho. Quem me dera ter três pedidos e não ser o gênio da lâmpada. Poderia o gênio ter um pedido? Ele a pediria com uma escolha certa de ser feliz.
(à psicologia que, em mim, se empoleirou)

Perdendo o toque

Chegou abril e, com toda a efervescência de um feriado prolongado, fez-se poesia. As palpitações centradas de um coração ousado expunham minhas emoções: ali está ela. O que separa minha poesia da tua música é apenas uma curta estrada de vinte quilômetros contados pela minha ansiedade e euforia. Além de números, entretanto, o meu retrocesso ababela todas as convicções. Queria eu não ser ousado e amar: tentei, assim, me curar, mas só remediei o insanável. O problema é que a estrada se prolongou dentro de mim e fui perdendo o toque. Incurado, portanto, continuei a sofrer. Fui vivendo meus confrontos e ilusões até perceber o quão vil minha vida é. Sem ti. Senti.

Sobre levitar

Ele anda deprimido com uma tristeza que entranha em quem vê e faz danar a mais bela alegria que há em nós. Ele também percebeu que sua idade se tornou oponente aos sentimentos que tinha no peito. Acho que está endoidando. A sua mulher, Amparo, de tanta coisa ruim, se acostumou... vive com os olhos grelados prestando atenção nos minúsculos detalhes de um fio de lã. E se, por acaso, alguém chamá-la, mande esperar duas horas pra que ela venha perceber e mais trinta minutos para vir atender. Ele saiu do emprego e não sai de casa, entre a sala e a garagem a gente vê o percurso feito por um ser que só se move, não parece pensar. O dedilhado é de praxe, aprendido de cor, não tem como ela esquecer. Parecem-me monstros alienados da terra dos vividos... ela vive circundando a aliança de casamento: eles já foram felizes e, enquanto a mente dela ciranda entre o passado, ele foca no futuro. Carrega madeira para a garagem e as aplaina, fazendo, assim, pernas de pau. Ele acena e ri e se faz ser feliz. Parecem dois anjos levitando, ele tapando o sol com os braços abertos parecendo voar e Amparo amparada pelo divino matrimônio e entre tules e tecidos. Ela procurou o passado. Ele procurou as pernas de pau. Esses são refúgios achados.